Lei de Programação Militar<br>deve ser levada a sério (*)
O Governo apresentou finalmente uma Proposta de Lei de revisão da Lei de Programação Militar (LPM). A LPM deveria ter sido revista em 2009. Não foi. A responsabilidade foi do Governo anterior. Não tendo sido revista em 2009, deveria ter sido revista em 2010. Não foi. O actual Governo deveria ter promovido a revisão da LPM em 2012. Não o fez. Em 2014, também não o fez.
A LPM, que é uma lei de valor reforçado, e que nos seus próprios termos deveria ser revista nos anos pares, vai ser revista num ano ímpar, e com seis anos de atraso.
Mas será que a LPM de 2006 nunca foi revista? É evidente que foi.
Nunca foi revista nos termos da Constituição e da lei, mas foi sempre revista à revelia das suas próprias disposições, através de cativações nos orçamentos do Estado, através de decisões avulsas tomadas pelo governo, que executa muito, executa pouco ou não executa nada, que elimina uns programas e cria outros, que faz o que muito bem entende, como se pura e simplesmente não existisse uma Lei de Programação Militar.
Porém, este processo de revisão da LPM nasce torto. Muito torto.
O Governo apresenta à Assembleia da República uma Proposta de Lei que é pouco mais do que um papel em branco.
Pode ler-se no artigo 14.º da Proposta de Lei que a proposta de lei de revisão da LPM deve conter fichas de capacidades e projectos com a descrição e justificação adequadas, bem como o respectivo planeamento detalhado.
E na verdade, sempre que a LPM foi revista nos termos da lei, assim foi. Em 2006 votámos na especialidade em plenário todos e cada um dos programas.
Pois bem: as fichas de projectos a submeter a esta Assembleia chegaram ontem [21.1.15] aos grupos parlamentares com a chancela de «confidencial».
Nem se acredita. Os programas da LPM não podem ser confidenciais.
As fichas de capacidades e projectos com a descrição e justificação adequadas, bem como o respectivo planeamento detalhado devem constar da Proposta de Lei, e os projectos devem ser votados na especialidade um por um, como sempre foram.
O que o Governo faz constar da proposta de lei é uma enumeração de capacidades sem correspondência em programas concretos. Nada adianta a esta Assembleia apreciar uma enumeração de capacidades. O que esta Assembleia tem o direito de decidir e os portugueses tem o direito de saber é se o Governo se propõe renovar os aviões C-130 ou adquirir KC 390 e quais os custos dessas opções. A Assembleia tem o direito de decidir e os portugueses têm o direito de saber, que navios vão ser adquiridos para a Marinha, se são NPO, se são navios patrulha dinamarqueses, se é um Polivalente Logístico, ou se são mais submarinos.
Questão de transparência
Os programas e projectos da Lei de Programação Militar não podem ser confidenciais. Estamos a falar de milhares de milhões de euros que os portugueses pagam com os seus impostos. Estamos a falar de opções estratégicas para o equipamento das Forças Armadas Portuguesas. Estamos a falar da revisão de uma lei cuja aplicação foi envolta em processos nebulosos, com consequências gravíssimas para a credibilidade do Estado e para o bolso dos portugueses.
Foi no âmbito da LPM que foram feitos os célebres contratos de contrapartidas nunca cumpridas, no valor de milhares de milhões de euros; que foram feitos contratos de aquisição de helicópteros sem cuidar de garantir a sua manutenção; que foram feitos contratos de aquisição de blindados de rodas que ficaram por entregar; que foram garantidos avultados proventos à ESCOM, à família Espírito Santo, e a personagens mistério.
A Lei de Programação Militar deveria ser levada muito a sério. Estamos a falar de um grande volume de recursos públicos cuja utilização tem de ser muito bem entendida pelos portugueses. Na definição e na execução dos investimentos destinados ao equipamento das Forças Armadas tem de haver uma definição muito criteriosa de prioridades, tem de haver rigor, tem de haver transparência. Os portugueses que pagam estes investimentos com os seus sacrifícios têm de entender a sua importância e saber exatamente o que estão a pagar, e não podem aceitar que a Assembleia da República assine cheques em branco de milhares de milhões de euros aos governos, para que estes façam e desfaçam os contratos que entenderem ao abrigo de cláusulas sigilosas, ao sabor de critérios mal explicados e ao serviço de interesses estranhos à boa gestão dos recursos públicos.
Esta Proposta de Lei de revisão da LPM, para além do seu caráter inaceitavelmente vago, contém a sua própria negação.
Senão vejamos: a LPM fixa as capacidades e as respectivas dotações orçamentais e determina que as leis que aprovam os orçamentos do Estado contemplem anualmente as dotações necessárias para a sua execução. Mas depois permite que o Governo proceda a alterações orçamentais entre capítulos, transfira dotações entre as diversas capacidades e projectos, crie novas capacidades e projectos. Ou seja: a LPM existe mas o Governo faz o que entende.
Mais: consta do artigo 10.º da PPL que as dotações da LPM estão excluídas de cativações orçamentais, mas sem prejuízo da lei que aprova o Orçamento do Estado. Quando toda a gente sabe que é a Lei do Orçamento do Estado que define as cativações orçamentais.
Mais ainda: segundo o artigo 17.º, a lei que vai ser aprovada não se aplica aos programas em curso até à sua completa execução. Ou seja, é a lei que está em vigor, e que é revogada, que continua a aplicar-se a todos os programas existentes, incluindo os programas que não estejam nela contemplados. Lê-se e não se acredita.
A lei de 2006 é revista e revogada, mas a lei que se aplica é a lei que é revogada e aplica-se aos programas que prevê e aos programas que não prevê. Estranha revisão da LPM.
Já quanto à Lei de Programação das Infra-estruturas Militares (LPIM), há pouco a dizer. A execução da lei tem sido quase inexpressiva e feita essencialmente à custa de um número muito reduzido de imóveis vendidos ao próprio Estado ou a entidades públicas.
A proposta de lei, porém, prevê alienações de valor superior a 92 milhões de euros para os próximos quatro anos, e mais 80 milhões para os quatro anos seguintes. Que alienações serão essas, ninguém sabe, mas se o papel aguenta tudo, o Diário da República, que é eletrónico, ainda aguenta mais.
* Intervenção na Assembleia da República, 22/01/15